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A comunhão é parcial, mas há quem insista em pedir a herança do que não lhe pertence

Por: Ivone Zeger (*)

Quando ela iniciou o relacionamento, ele já tinha uma empresa. Permaneceram em união estável por cinco anos, até o falecimento dele. Nesse período, a empresa teve suas quotas sociais valorizadas.

Agora, ela quer receber como herança uma quantia em dinheiro referente à valorização dessas quotas. Será possível?

As leis não são imutáveis, mas também nem tão flexíveis que possam mudar ao sabor dos acontecimentos. Afinal, e essa é a parte interessante, as leis dizem respeito a condutas, necessidades e desejos humanos.

Com esses ingredientes, até o que parece certo como uma equação matemática pode ser questionado pelos cidadãos. Bem, o fato é que questionar, reclamar, mover ações judiciais, tudo isso é legal e possível. Já obter sucesso nessas ações é uma outra história.

Para responder a pergunta que foi, inclusive, tema de polêmica entre tribunais, vamos ao ponto: no Brasil, o regime de bens no casamento tem cinco modalidades e cada uma delas está muito bem especificada em lei. O regime de bens tem como objetivo determinar a forma como o casal administrará seus bens ao longo da união.

Tão importante quanto: eles apontam como será realizada a partilha caso sobrevenha o divórcio ou o falecimento de um dos cônjuges.

O regime de bens é estipulado no pacto antenupcial, uma peça jurídica na qual os futuros cônjuges não só podem decidir sobre o regime patrimonial como também podem estipular cláusulas específicas, dentro dos limites legais, em relação a esse ou aquele bem.

Resumidamente, a leis brasileiras contemplam os seguintes regimes:

– comunhão universal,

– comunhão parcial,

– participação final nos aquestos,

– separação total e

– separação obrigatória de bens.

Muito pode ser dito a respeito de cada um deles.

O mais utilizado, o “campeão de audiência”, digamos assim, é o regime da comunhão parcial de bens.

Por que? Justamente porque é o regime de bens que passa a vigorar caso os noivos não tenham feito o pacto antenupcial. Ou porque o patrimônio ainda será construído e o casal tem a impressão de que o pacto é desnecessário, ou porque o casal prefere não pensar no assunto, simplesmente ignora a possibilidade de realizá-lo.

Companheiros também podem indicar um regime de bens se elaborarem um contrato de convivência ou uma escritura de união estável em cartório. E como todo casamento civil ou união estável requer um regime de bens, na falta de sua definição, passa a vigorar o regime de comunhão parcial, que determina o seguinte:

Em caso de divórcio, os contraentes partilham apenas os bens adquiridos ao longo do casamento ou união estável. Em caso de falecimento, o cônjuge ou companheiro sobrevivente ficará com metade dos bens adquiridos durante o casamento ou união estável – o que é chamado de meação, mesmo que não tenha contribuído financeiramente para sua aquisição.

Mas em relação à herança propriamente, é bom que se diga, há uma grande diferença entre o que cabe ao cônjuge e ao companheiro. O cônjuge concorre com os demais herdeiros para receber todo o conjunto de bens do falecido, tanto aqueles adquiridos ao longo do casamento, quanto os bens particulares. Já o companheiro concorre com os demais herdeiros somente naquela parte do patrimônio que foi adquirida ao longo da união estável.

Recentemente, entretanto, algo assim, tão “simples”, gerou certa polêmica nos tribunais. Esmiuçando o episódio contado no início, a questão foi a seguinte: uma mulher viveu em união estável por cinco anos, de 1993 a 1997, quando, então, seu companheiro faleceu. Foi aberto o inventário. A companheira entrou com uma ação para reconhecimento de união estável.

Aqui, é importante esclarecer que essa etapa do reconhecimento da união é fundamental para quem viveu em união estável e necessita buscar os seus direitos. Se ao invés de companheira, fosse cônjuge, teria uma certidão de casamento, o que facilitaria todo o trâmite, ou seja, ela não teria de provar nada.

Mas, voltemos à questão. O que a ex-companheira requeria era o valor em dinheiro referente à valorização das quotas sociais de uma empresa do companheiro falecido, valorização esta ocorrida ao longo dos cinco anos de união estável.

Pois bem, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) reconheceu a existência da união estável e considerou essa valorização das ações sociais um acréscimo patrimonial, determinando sua partilha. Parece justo, não? Afinal, embora a empresa existisse antes da união estável, foi ao longo da união que as quotas se valorizaram.

Mas não foi essa a opinião da família do falecido, portanto detentora do patrimônio. Não satisfeita, a família interpôs recurso especial no STJ – Superior Tribunal de Justiça – contra a decisão do tribunal gaúcho. Nas mãos da Terceira Turma do STJ, o relator do recurso, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino colocou os pingos nos “is”.

Para começar, lembrou o artigo 1725 do Código Civil: na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens .

E deu uma aula sobre sucessão de bens: “nesse regime, apenas os bens comuns se comunicam, ficando excluídos da comunhão os bens que cada companheiro já possuía antes do início da união estável, bem como os adquiridos na sua constância, a título gratuito, por doação, sucessão ou os sub-rogados em seu lugar”.

Para o relator, uma vez comprovado e reconhecido que as quotas sociais do companheiro falecido já lhe pertenciam antes do início do período de convivência, o acórdão deve retirar da partilha de bens a valorização das quotas sociais.

Sansseverino também destacou que, ainda que de forma presumida, o crescimento do patrimônio do casal infere a existência de um esforço comum. Entretanto, a quota social “é decorrência de um fenômeno econômico, que não tem relação com a comunhão de esforço do casal”.

A família, portanto, ganhou a causa.

É verdade que, nesse caso, por se tratar de um bem sem materialidade, o cenário fica um pouco mais confuso. Mas o ministro Sansseverino, justamente para clarear um pouco mais, utilizou o argumento do desembargador José Ataíde Trindade, que na instância anterior, lá no tribunal gaúcho, foi voto vencido.

O desembargador disse: Fosse um imóvel adquirido antes do início do período de convivência, certamente, nem ele (imóvel) nem sua valorização imobiliária seriam objeto de partilha, devendo ser aplicada a mesma lógica às quotas sociais”. E foi o que o STJ fez.

É isso. A aplicação da lei exige objetividade e, repare, quanto mais simples é sua interpretação, mais rápido se chega à conclusão!

(*) Ivone Zeger é Advogada, consultora jurídica, palestrante e escritora

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