Por: Carlos Augusto Daniel Neto e Caio Cesar Nader Quintella
Na coluna de hoje, retomaremos o espinhoso tema da tributação das mais-valias por empresas optantes pelo regime de apuração do Lucro Presumido, para fins de pagamento de IRPJ e CSLL.
O tema já foi objeto de dois excelentes artigos escritos nesta coluna, pelos colegas Fernando Brasil de Oliveira Pinto e Paulo Henrique Silva Figueiredo[1], aos quais remetemos os leitores interessados na matéria e numa introdução do seu contexto normativo.
Aqui, entretanto, abordaremos uma situação típica de empresas que exercem atividades imobiliárias: os limites e as condições para que o contribuinte proceda a reclassificação contábil de um de seus bens imóveis.
Nos casos analisados, o cerne da controvérsia não é a opção pelo Lucro Presumido (a qual é mera opção fiscal do contribuinte), tampouco questões acessórias, como o registro da operação.
No presente trabalho, discutir-se-á a possibilidade de as empresas procederem a modificação da classificação contábil dos imóveis, do Ativo Imobilizado para o Ativo Circulante (estoque), de modo que o produto de sua alienação seja tributado como receita operacional, e não como ganho de capital, a e oponibilidade dessa manobra à fiscalização.
Inicialmente, como também ponderado nos julgados do Carf, pontuamos que a definição contábil de Ativo Imobilizado, nos termos da Resolução CFC n° 1.177/09 e no Pronunciamento CPC 27, é a seguinte:
“imobilizado é o item tangível que: é mantido para uso na produção ou fornecimento de mercadorias ou serviços, para aluguel a outros, ou para fins administrativos e se espera utilizar por mais de um período”.
Por outro lado, o Ativo Circulante é definido, nos termos do Pronunciamento CPC 26 (R1), como o ativo que atende a um dos seguintes critérios:
- i) espera-se que seja realizado, ou pretende-se que seja vendido ou consumido no decurso normal do ciclo operacional da entidade;
- ii) está mantido essencialmente com o propósito de ser negociado;
iii) espera-se que seja realizado até doze meses após a data do balanço; ou
- iv) é caixa ou equivalente de caixa, a menos que sua troca ou uso para liquidação de passivo se encontre vedada durante pelo menos doze meses após a data do balanço.
Por fim, registre-se que o tema também foi tratado pela Solução de Consulta COSIT nº 254/2014:
ASSUNTO: Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica – IRPJ EMENTA: LUCRO PRESUMIDO. ATIVIDADE IMOBILIÁRIA. VENDA DE IMÓVEIS. TRIBUTAÇÃO.
As receitas decorrentes da venda de imóveis, efetuadas por pessoa jurídica que exerça de fato e de direito atividade imobiliária, sob a sistemática do lucro presumido, sujeitam-se ao percentual de presunção de oito por cento para apuração da base de cálculo do IRPJ, ainda que os imóveis destinados a venda tenham sido adquiridos antes de formalizada na Junta Comercial a inclusão de tal atividade em seu objeto social. DISPOSITIVOS LEGAIS: Decreto nº 3.000, de 26 de março de 1999 (RIR/99), arts. 224, 518 e 519.[2]
Considerando tais regramentos, naturalmente, é certa a necessidade de que a classificação do ativo seja feita com base na expectativa real do gestor da pessoa jurídica, tendo em vista que a contabilidade não autoriza, mormente em função do princípio da substância sobre a forma, que se façam manobras contábeis com a finalidade exclusiva de gerar benefícios tributários.
No acórdão nº 1402-003.859[3], tratou-se de uma empresa que, historicamente, exercia atividade agropecuária, e que em 2008 incluiu no seu contrato social a atividade imobiliária, reclassificando um terreno rural que possuía para a conta de Estoque vindo, em 2011, a aliená-lo, sujeitando seu produto à tributação como receita operacional.
No caso, a fiscalização entendeu que a reclassificação seria ato fraudulento, uma vez que a empresa não teria exercido atividade imobiliária de fato entre 2008 e 2013. O relator pontuou que o terreno era explorado por meio do seu arrendamento a terceiros como forma de manutenção do próprio bem e que a transação se deu de acordo com o objeto social da Contribuinte, e que o fluxo escritural da receita de venda do imóvel, estava conforme a sua classificação contábil.
Além disso, reforçava a mudança de atividade o fato dela não realizar mais atividade agropecuária, e o fato de não haver vedação de empresas imobiliárias fazerem apenas uma transação, a exemplo das SPEs.
Já no voto vencedor, entretanto, concluiu-se que a empresa nunca exerceu efetivamente atividade imobiliária, e não constou das suas declarações fiscais tal atividade ao tempo da venda.
Além disso, pontuo que se passou mais de um ano da reclassificação para estoque, sem ser vendido, o que afastaria sua natureza de circulante. Por fim, o fato de ser uma única transação deixaria claro que a manobra de reclassificação visava apenas a vantagem tributária da tributação pelo lucro presumido.
Em outra decisão que tratou de caso semelhante, no acórdão nº 1302-002.033[4], tratou-se de empresa agropecuária que incluiu em seu contrato social a atividade de “compra e venda de imóveis próprios”, por meio de alteração registrada em 12/09/2008, mas aduziu a fiscalização que a venda do imóvel já havia se concretizado em 18/07/2008, concluindo que a reclassificação desse ativo para Estoque fora mero formalismo, com a finalidade de submeter a tributação do produto da venda ao regime da receita operacional, no Lucro Presumido.
O relator endossou os fundamentos da fiscalização, concluindo que a reclassificação fora artificial, em razão dos seguintes elementos:
- i)falta de atividade imobiliária da empresa;
- ii)alteração do objeto social para incluir atividade imobiliária apenas após a operação de venda;
iii) o fato do imóvel não ter sido adquirido originalmente para revenda; e
- iv)não há prova de que, desde a origem da empresa, a intenção seria empregar o imóvel em atividade imobiliária.
Em razão disso, concluiu que a reclassificação não atendia aos itens 57 e 58 do Pronunciamento CPC 28, que trata da possibilidade de transferência do imóvel de “propriedade para investimento” para Estoque.
O acórdão nº 1402-002.874[5], analisou o caso de empresa que adquiriu imóvel para construção e venda de unidades imobiliárias, por meio de incorporação, utilizando-se de SPE[6], mantendo esse imóvel constantemente em seu Estoque, que, na sequência, desiste da construção e permuta o terreno.
A fiscalização entendeu que a receita da operação (valor do bem permutado) seria não-operacional, pois não se relacionava à atividade final da SPE e o imóvel, então, deveria estar no Ativo Imobilizado, tributando-a como ganho de capital, e não como receita operacional no lucro presumido.
O relator, no caso, ponderou que o conceito de receita bruta imobiliária é amplo (art. 30 da Lei nº 8.981/95[7]), de modo que abrange tanto a operação de aquisição e posterior permuta/venda, como a incorporação imobiliária, estando ambas sujeitas ao mesmo tratamento tributário no Lucro Presumido, inclusive com idêntico percentual de base de cálculo.
Além disso, rechaçou o entendimento da classificação contábil do Ativo Imobilizado, tendo em vista que ele era mantido com propósito de ser negociado – seja em estado “nu”, seja como parte ideal, agregado às unidades imobiliárias[8].
Diferentemente dos casos acima, nos quais o imóvel alienado estava classificado como Estoque, no julgamento que resultou no acórdão nº 1301-003.022[9], analisou-se o caso de empresa que atuava na área imobiliária, mas o imóvel estava classificado no Ativo Imobilizado, sendo alugado a terceiros, antes da alienação.
Aqui, observou o relator que já constava no Contrato Social, no seu objeto, a atividade de compra e venda de imóveis, o que em regra enquadraria a alienação no objeto social, justificando o tratamento do ganho apurado na operação como receita operacional.
Ademais, invocou o acórdão nº 1401-001.225 para sustentar que o simples fato de o imóvel estar alugado, não bastaria para desqualificá-lo como elemento do Estoque, devendo ser observado o contexto operacional para concluir pela correção ou incorreção da contabilização do ativo.
Nesse caso, o relator deu clara preferência para a substância econômica dos ativos e o contexto da operação realizada, em relação à forma como o bem estava escriturado no balanço da empresa.
Como se vê, a questão da validade da reclassificação contábil de imóveis, para fins de alienação, é uma questão que se coloca discretamente no bojo da problemática da apuração de ganhos de capital e da receitas operacionais nas empresas que exercem atividades imobiliárias, mas é fundamental na verificação da carga tributária das operações, o que suscita divergências dentro do âmbito do Carf.
Trata-se de uma discussão eminentemente contábil, ainda que tenha relevantes reflexos fiscais, e, portanto, a sua solução deverá observar os princípios usualmente aceitos da contabilidade, dentro os quais se destaca o princípio da substância sobre a forma, que se relaciona sobremaneira com a consideração do contexto operacional da empresa, e das circunstâncias nas quais se deu a reclassificação e a alienação do bem imóvel.
Entretanto, parece-nos que deve se ter alguma cautela na identificação de critérios objetivos, binários, de validação ou não das reclassificações, exatamente porque essa análise substantiva pressupõe a consideração global de diversos elementos fáticos.
Por exemplo: o simples fato de o ativo permanecer no Estoque, sem ser vendido, por mais de um ano, não é contabilmente suficiente para a sua reclassificação no Imobilizado, tendo em vista que o critério é a intenção atual de vendê-lo no curso normal dos negócios da empresa – e é isso que deve ser verificado na análise do seu enquadramento contábil.
Outro ponto relevante é a realização de atividades imobiliárias. Por um lado, a ausência de outras operações com imóveis, pretéritas ou futuras, pode indicar que não se tratava de uma atividade efetiva da empresa, mas há que se ponderar também, como feito no acórdão nº 1402-002.874, a possibilidade de uma SPE cuja finalidade é exatamente a alienação do bem, o que dispensaria a demonstração de outros negócios.
Mesmo o fato da empresa não ter sido criada originalmente para atividades imobiliárias, ou imóvel não ter sido adquirido para revenda ou incorporação, por exemplo, não pode ser tomado como um impeditivo ao reconhecimento da validade da reclassificação, até mesmo porque é natural que empresas alterem seu escopo social e a destinação de seus ativos, ao longo da vida econômica. Trata-se de um nível de flexibilidade compatível com a dinâmica real das empresas.
Em suma: o tema demanda uma análise ampla das circunstâncias envolvidas na operação da empresa, com a finalidade de compreender a intenção da empresa (de seus gestores) em relação a determinados ativos, e como eles se inserem no contexto econômico da empresa, para que se possa avaliar de maneira contabilmente adequada a validade ou não da reclassificação, fugindo-se, sempre que possível, de soluções apriorísticas ou simplistas.
[1]Os textos estão disponíveis nos seguintes links:
https://www.conjur.com.br/2019-dez-18/direto-carf-carf-aborda-apuracao-ganho-capital-lucro-presumido e https://www.conjur.com.br/2020-jan-29/direto-carf-carf-aborda-ganho-capital-lucro-presumido-parte.
[2] O mesmo entendimento foi exarado em relação à CSLL, na mesma consulta.
[3] Voto vencedor Cons. Paulo Ciccone, julgado em 16/04/2019.
[4] Relator Cons. Rogério Aparecido Gil, julgado em 26/01//2017.
[5] Voto vencedor Cons. Paulo Ciccone, julgado em 19/02/2018.
[6] Sociedade de Propósito Específico.
[7] Art. 30. As pessoas jurídicas que explorem atividades imobiliárias relativa a loteamento de terrenos, incorporação imobiliária, construção de prédios destinados à venda, bem como a venda de imóveis construídos ou adquiridos para revenda, deverão considerar como receita bruta o montante efetivamente recebido, relativo às unidades imobiliárias vendidas.
[8] Cabe ressaltar que, nessa decisão, o voto vencedor pareceu fazer prevalecer o entendimento contrário ao do relator, mas essa contrariedade foi esclarecida no acórdão nº 1402-003.585, no qual se fixou que a divergência vencedora dizia respeito à base de cálculo dos tributos, e não quanto à classificação contábil adotada pelo contribuinte.
[9] Relator Cons. Roberto Silva, julgado em 16/05/2018.
Carlos Augusto Daniel Neto é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf e professor em cursos de pós-graduação.
Caio Cesar Nader Quintella é vice-presidente da 1ª Seção e Conselheiro Titular da 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf. Mestre em Direito Tributário pela PUC-SP.
Revista Consultor Jurídico, 22 de julho de 2020