Por: Fernanda Rangel Nunes de Oliveira (*)
O projeto de conversão da MP em lei (PLC 21/19), resultante das emendas realizadas ao texto original da MP ao longo de sua tramitação no Congresso Nacional, aguardava a sanção ou veto do presidente da República Jair Bolsonaro, o que ocorreu no dia 20 de setembro de 2019.
Seguindo o trâmite legislativo, o PLC foi publicado no diário oficial da união, tornando-se a lei 13.874/19.
A medida provisória da liberdade econômica 881/19 (MP) instituiu a chamada “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”, estabeleceu garantias de livre mercado e alterou diversas regras do ordenamento jurídico de natureza cível, tributária, trabalhista, societária etc., sob a justificativa de afastar a percepção de que, no Brasil, o exercício das atividades econômicas depende de prévia permissão do Estado e estimular o empreendedorismo e o desenvolvimento econômico do país.
O projeto de conversão da MP em lei (PLC 21/19), resultante das emendas realizadas ao texto original da MP ao longo de sua tramitação no Congresso Nacional, aguardava a sanção ou veto do presidente da República Jair Bolsonaro, o que ocorreu no dia 20 de setembro de 2019. Seguindo o trâmite legislativo, o PLC foi publicado no diário oficial da união, tornando-se a lei 13.874/19.
O texto aprovado traz a previsão da chamada “sociedade limitada unipessoal”. Por meio da inclusão do parágrafo único ao art. 1.052 do CC, a lei 13.874/19 estabelece que a sociedade limitada agora poderá ser constituída por um único sócio, in verbis:
“Art. 1.052.
(…)
Parágrafo único. A sociedade limitada pode ser constituída por uma ou mais pessoas, hipótese em que se aplicarão ao documento de constituição do sócio único, no que couber, as disposições sobre o contrato social.”
O objetivo do presente estudo é, sobretudo, analisar o impacto da introdução deste tipo societário no atual ordenamento jurídico brasileiro no campo do Direito Societário, considerando que a MP começou a produzir efeitos jurídicos em abril de 2019, na data de sua publicação, e já passou por todas as etapas de tramitação, culminando com a sua conversão em lei ordinária.
Como a edição de decreto legislativo pelo Congresso Nacional, para regular as relações jurídicas decorrentes de sua edição, não ocorreu no prazo constitucional de 60 dias, as relações jurídicas constituídas durante o seu período de vigência conservam-se regidas pela MP.
A sociedade limitada unipessoal criada pela MP, com o objetivo de estimular o empreendedorismo e o desenvolvimento econômico do país, seguindo a tendência de outros países, passou então a coexistir ao lado das duas sociedades unipessoais já existentes na prática empresarial brasileira:
– a subsidiária integral (LSA, art. 251) e a
– Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (CC, art. 980-A), conforme a Exposição de Motivos Interministerial 00083/19 ME AGU MJSP.
Em verdade, a constituição de sociedades limitadas “fictícias ou de fachada” não representa uma prática incomum no Brasil. A constituição de sociedades limitadas compostas por um sócio subscritor da quase totalidade do capital social (99%, pelo menos) e alguém de sua confiança que se disponha a subscrever a parcela restante (geralmente, uma única quota), vem ocorrendo no Brasil desde há muito tempo, antes mesmo do Código Civil de 2002 prever a unipessoalidade incidental (CC, art. 1.033, IV).
Esperava-se que tal prática diminuísse com a entrada em vigor da lei 12.441/11, em 11 de janeiro de 2012, momento em que o direito brasileiro incorporou a solução societária para a limitação da responsabilidade do empresário individual, passando a admitir a EIRELI ao nosso ordenamento jurídico.
A criação da figura da sociedade limitada unipessoal pela MP acaba com o principal entrave para a constituição de uma empresa de responsabilidade limitada por um único titular, já que a nova figura jurídica não possui a obrigação de integralização de um capital social mínimo à vista, não inferior a 100 salários mínimos (CC, art. 980-A), como ocorre no caso da EIRELI.
Diferentemente da pessoa jurídica, a pessoa física não pode ser titular de mais de uma EIRELI (DREI IN 47/18; CC, art. 980-A, § 2º).
Já em relação às sociedades limitadas, não há restrição à quantidade de sociedades de que seu sócio venha a fazer parte.
Certamente, a sociedade limitada unipessoal também possui vantagens em relação ao Empresário Individual (EI), quando enquadrado como Microempreendedor Individual (MEI), quais sejam:
– (I) a ausência de
– (a) limitação de faturamento,
– (b) obrigação de opção pelo Simples Nacional, e
– (c) limitação de atividades;
– (II) vedação de constituição de mais de um estabelecimento e participação em outra empresa, como titular, sócio ou administrador; e
– III) limitação para contratação de empregado.
Com o objetivo de facilitar o entendimento dos pontos destacados neste artigo, elaboramos o quadro sinótico comparativo abaixo, contendo as principais diferenças entre os tipos societários MEI, EIRELI e a nova sociedade limitada unipessoal.
A principal vantagem da nova sociedade limitada unipessoal em comparação ao MEI é que somente a primeira figura jurídica adquire personalidade jurídica com o registro do seu ato constitutivo no órgão competente. Desta forma, não seria possível atingir o patrimônio do sócio da sociedade limitada sem a prévia desconsideração da sua personalidade jurídica. O MEI, ao contrário, carece de delimitação de responsabilidade. Portanto, o seu titular responde diretamente pelas dívidas societárias.
Por outro lado, a EIRELI, como já aludido acima, representa, no Brasil, o tipo societário que garante a limitação da responsabilidade patrimonial do empresário individual ou mesmo da pessoa jurídica instituidora, já que a lei 12.441/11 expressamente prevê a aplicação ao instituto, no que for cabível, das regras próprias das sociedades limitadas (CC, Art. 980-A, §6º).
Acontece que a criação da figura da sociedade limitada unipessoal acaba por desprestigiar o instituto da EIRELI, criado com o mesmo objetivo da MP, pois não se vislumbra vantagem para o empresário em optar pela constituição de uma EIRELI, e não por uma sociedade limitada unipessoal, diante do capital social exigido pela lei, excessivo diante das possibilidades financeiras de grande parte dos pequenos empresários no âmbito nacional.
A criação deste novo tipo societário, com a manutenção das limitações da EIRELI, acarretará no seu provável desaparecimento da prática societária brasileira, a exemplo do que ocorreu com a sociedade em comandita simples, caracterizada pela existência de dois tipos de sócios: os sócios comanditários, que possuem responsabilidade limitada em relação às obrigações contraídas pela sociedade, e os comanditados, que respondem ilimitadamente pelas obrigações da sociedade.
Tal tipo societário, apesar de ter sido consagrado como uma das espécies mais difundidas no passado, e que teve sua origem histórica no contrato de comenda, utilizado na Idade Média, nas cidades italianas, encontra-se em desuso na atualidade.
A despeito deste aspecto negativo, a lei 13.874/19 influenciará de forma positiva os projetos de reestruturação patrimonial e sucessória.
Com o surgimento da nova figura da sociedade limitada unipessoal, o “sócio laranja” – pessoa física ou jurídica que compõe o quadro societário apenas para fins de composição da pluralidade de sócios – deixará de existir nas sociedades limitadas, facilitando a criação de novos arranjos societários.
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*Fernanda Rangel Nunes de Oliveira é advogada da área societária e contratual do escritório A. Lopes Muniz Advogados Associados.